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Marcos Resende Poemas

Marcos Resende Poemas

Apocalipse I

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Faltam poucas horas.
E ninguém sabe.
Todos caminham
E ninguém sabe.
Mas, ninguém pergunta: anda.

Multidão de gente que precisa andar, embora o frio, a fome, o sono e os músculos doloridos não se compenetrem de que o que sempre foi, nunca mais será, porque ninguém consegue mais revigorar as ampulhetas, relógios e clepsidras e nem sequer cogita-se da necessidade de se fazer isto. E muito menos passa pela cabeça de qualquer mortal que até o dia de ontem era costume consultar-se, constantemente esses instrumentos e que, por hábito, contava-se o tempo e até o dividiam.

Até o dia de ontem tudo estava acontecendo na mais perfeita guerra, ordem e sincronismo. E por que hoje tudo mudou? Por que as frigideiras não estão chiando ao calor do fogo, e os ônibus, aviões e trens não cumprem suas rotas costumeiras?

Por que tudo mudou? Ontem, a esta hora, tudo parecia ingenuamente bom, e a brisa, o sol e a lua — sem qualquer aspecto de renúncia (ou mesmo, de cumplicidade) — compareceram com fidelidade ao compromisso cósmico.

Ai, porque hoje não é o ontem que ontem foi? E quem semeará o trigo e o centeio, agora que este hoje hojou sem escrúpulo? Quem apascentará os rebanhos e apartará das flores as ervas daninhas? E os ratos, gafanhotos, traças? E os escorpiões, quem os matará? As formigas destruirão o que de destruível for, se por acaso a bicabilidade dos pardais não se antecipar. E por que? Por que mudou?

E esta andança sem parança leva a qual cidade? Se houvesse quem soubesse um nada disto tudo, saberia tudo, porque nada sabem os itinerantes seres — outrora nominados homens e mulheres.

Nada se pode fazer. E fazer o que? Como negar a estes famintos seres pernimoventes o direito de saciarem sua fome de caminhar ao deus-dará? Qual coração destituído de caridade ergueria barricadas e obs-táculos proibitivos a esta sede corrosiva que os moveu a pular de suas camas à meia noite em ponto e os fez se desentocar brutalmente de onde quer que estivessem, e os empurrou — vestidos como estavam — a esta andarilhança?

Tudo mudou. E por que?

Todos vão. Ninguém resiste.
Os inválidos e paralíticos se recuperam de seus membros nulos e se incorporam à população ambulante. Um a um, velhos e velhas, bebês e leopardos caminham lado a lado. Individualmente. Hipnotizados.
E o vento se compraz em se espojar no espaço que ontem, possuído, é hoje intenso e vago.

Por que mudou o mundo e todos se conformam — e mais que isto — apóiam e compactuam com o golpe baixo às tradições aceitas? Por que ninguém faz nada? O soberano omite-se em razão de quê?
Policiais, soldados, guardas, carcereiros soltam dos cubículos todos os prisioneiros e ninguém se detém em minúsculo ponto de interrogação que seja?
Onde o espadejar enérgico dos generais, o pulso de ferro dos governadores, a excomunhão tonitruante dos cardeais?

O sol sumiu do céu, se extraviou, fugiu. Dez horas da manhã e o sol negou. Negrou. Não veio. Nem virá. Foi buscar refúgio na última galáxia.
E ninguém terá idéia de se conscientizar desta negligência a mais, porque a curiosidade esteve em vigor até o dia de ontem e a capacidade humana de perguntar, que de há muito ia, dia a dia, sendo desencorajada por várias circunstâncias, se viu a partir de hoje varrida definitivamente da face da Terra.

Faltam poucas horas.
E ninguém sabe.
O que sempre foi nunca mais será.
A escuridão range os dentes e resiste.
E amanhece na cidade e no mundo.

II
 
A hora é mágica, fantástica, pacífica.
Processa-se a procissão
que progride num progresso
que não espanta nem fere,
nem agride, nem pergunta.

E não se trata de um,
nem de dois,
nem de dezenas.
É caudalosa avalanche
de carne, sangue e volume.
É lume, é luz dos archotes,
é labareda de tochas
iluminando o desfile.

Já não se trata de nada.
São autômatos.
Mecânicos.
Computadores orgânicos
em marcha, em massa, em cordão.

Já não se tratam de alguns.
É a humanidade compacta
entrelaçada inteiriça
na caminhante mania.
São continentes inteiros
Inteiros em contingentes.
Incontinenti aderindo
à doença andeja andante.
 
III

 

E todos os feiticeiros trouxeram cataventos.
E todos os túmulos se abriram e despejaram
poetas, menestreis e mágicos.

E todos os gondoleiros louros
atravessaram os canais,
os farois e os umbrais
das poesias mais tempestuosas,
das saudades mais amargas,
das promessas vagas,
lancinantes mágoas,
procurando a luz em lâminas de alento.

Singram sensações
que desconhecem príncipes e princípios,
porque todos os lemes e lemas foram esquecidos,
como perderam o sentido reis e leis,
bulas e bússolas,
rotas e rotinas,
couraças e ancoradouros,
promontórios e semáforos.
 
IV
 
Os que estiverem nas brumas,
nas penumbras, nas necrópoles

Os que estiverem brincando,
padecendo, machucando,
descrevendo ou destroçando,
troçando, escrevendo ou rindo

Os que estiverem despidos, distraídos ou perdidos
e — principalmente os que não foram traídos
e não obstante,
traíram até seus pensamentos mais íntimos

Os que estiverem não fujam,
não disfarcem, não adiem:
peguem martelos e pás,
picaretas e guindastes,
e desenterrem seus mortos,
que, através de dinastias, reinados e tiranias,
foram sepultados vivos,
cimentados nas paredes
dos castelos, dos mosteiros,
sufocados nas cisternas,
enterrados nas varandas.

V

Enquanto processa-se a procissão e nem por isso o silêncio desiste de desexistir, eis que — no íntimo da África, um babalorixá assina, um pai-de-santo assinala, um ogan sibila e abala o bumbo e bole no atabaque. Bate no tan-tan. E o batebã rebate pela selva toda. De todas as bandeiras, bandas e arrabaldes comparecem tochas, lanças e guerreiros.

É o povo em fé à batucada e ao rei; ao santo e ao deus das maravilhas roxas, dos canaviais, das chuvas, da mulher de mel.

É a hora do mito.
É a hora do rito.
É a hora em que o homem procura uma ponte que aponte o caminho que vença a distância interposta entre a terra e o Senhor das estrelas.

Tambor de Luanda é Tambor da Bahia.
Se o vento espalhou, não se viu. Nem valeu. Ninguém combinou. Se o galo cantou, não se ouviu, nem contou. Ninguém percebeu. Coincidência talvez. Num quase assustando, zabumba e agogô, tumbadora, bongô retumbaram na taba. No escuro. No mar. No silêncio.

Bumbou batebum no terreiro sem ordem, sem chefe, sem hora, nem dia. Ninguém na palmeira. Ninguém avisado. Sem banho de erva. Incenso apagado.

Milagre? Castigo? Brinquedo de Exu? Pergunta não houve. Vestiram de branco.

Terreiro de preto é congal e é sagrado. E se alguém começou no batuque e na dança, não há quem rejeite. Estão prontos, se apressam e se deitam na areia e no sal.

Se cantam seus pontos, os santos se achegam. Revestem seus corpos. Oxóssi das Matas despacha, aconselha, dá passes e dança.

Tambor de Luanda é Tambor de Umbanda. E todas as tribos, de todas as terras, países, raízes e cores e coros e povos, costumes, se multimoveram no mesmo princípio.

É a dança que dança e redança e não cansa e não pára, não mata, nem fere e regira e revira e retrança no vira-que-vira, no cai-e-levanta; e o rumor compassado comanda e desmanda, marcante, cantante, ficando e fincando no sangue, no bam e sistema nervoso, num bate-que-bum, taque-tabe, rebum, sacum-bum, sacum-bate.

É a fé. Candomblé. É o jogo de búzios. Oxum cochichando nas conchas do mar. No axé, orixás chamejantes xingando, chispando, fechando despachos e ebós. Eparrei!
Iyakêkêrês, berimbaus, caxixis, a dança das cobras em Oxumarê. O sangue das pombas, a lua encantada descendo nas tendas, luando os pejis.

E a lua é Luanda montando nas moças, deixando em seus ombros um gosto de mato, um charme de bicho, um ar de pantera, um dorso de fêmea cheirando alecrim.

É quase um rodamoinho, carisma ou cataclisma. São caboclos, pretos velhos, aptos e ávidos para incorporar seus médiuns e presidir a sessão de prodígios, no intercâmbio entre o homem que desconhece e crê, e se mancomuna com o todo-poder da sombra, transubstanciado em espectros que falam a mesma língua, o mesmo dialeto.

Rabo-de-arraia. Rá. Raiou. Zimbo-birê. Okê arô. Angola pequena. Jandá-iê. Zem. Faca de ponta. Co-co-ro-cou. Colares de contas. Za-zuê. Zagaia zuniu. Za-zoou. Angola-iê. Ô-timbora.

Incenso defuma. Os santos comandam, dão ordens, consolam, conselham, dão passes. Descruzam, descargam, carregam, milongam — ô-colê.
É o fumo. A cachaça. O incenso. O charuto. O cachimbo. O suor gote-jante na pele, no peito. Aiê-colê, colaiá. É o fumo. A cachaça, o in-censo, o charuto, o cachimbo, é Exu, é Xangô, é Ogum, Iemanjá. É o fumo a cachaça o incenso o charuto o cachimbo o suor é o fumo a cachaça o incenso o cachimbo o charuto é o fumo a cachaça o incenso o charuto o suor o suor, laroiê, Exu!

Os encantados e ekédis, iaôs e orixás, os obás e os cambones, súbito saem da dança. Batem cabeça e caminham.

VI

Silêncio nas cerejeiras. Nos fiordes. Nas giestas.


No Oriente, os muçulmanos e budistas, os Veneráveis Adoradores do Fogo, os trezentos mil deuses da Índia e os brâmanes e os párias e a interminável legião de prosélitos das diversas seitas que proliferam no Japão, na China e na Pérsia, acenderam archotes, lanternas, lamparinas, candeias e candelabros porque um terremoto se juntou à insinuação do vento do deserto.

E antigas profecias, alfarrábios e papiros renasceram na memória dos monges octogenários.
E velhas arcas foram removidas dos sacrários proibidos.
E um a um, os mistérios indevassáveis emergiram do ostracismo e obscuridade dos milênios.

O Superior da Venerável Ordem paramentado pelo capuz vermelho que a ocasião impunha, empunha tremulamente um alfanje, e ordena que os fieis cubram a cabeça de cinzas e entoem os cânticos habituais de expiação.

E um a um, os lacres e selos esparramam-se ao chão e os três pergaminhos que existiam foram desvendados e vasculhados e assimilados e difundidos. E os que puderam ver e ouvir o que estava escrito compreenderam, por fim, que deveriam se misturar à procissão que havia e a que ninguém fugia.

VII

A hora é mágica. Letárgica. Terrível.

Os mortos se reúnem aos vivos e milênios se convivem. Mas, não se chocam: desfilam.

Os árabes e os hebreus, os sumérios e caldeus, lemurianos e acádios amortecidos levitam, aliviados do peso das sagas e das conquistas, das pilhagens e pelejas.

As amazonas galopam em cavalos antropófagos — escudo e lança na mão — corações enrijecidos. Os tártaros de Kublai Khan, amados até os dentes, ardentes como meninos esparramam-se entre elas. Batalha de corpo a corpo. Caçada entre macho e virgem.

(Ela, correndo, tropeça. Ele espera. Ela se esconde. Ele acha e quase pega. Ela escorrega e escapole, pula pedra, pula cerca, pula no rio toda nua, sai na outra margem, respinga, resplandece, insinua. Ele aparece. Ela corre. Ele alcança, captura. Ela morde, foge, cansa, rola no chão, desfalece, finge que chora, se rende. Ele cavalga seu corpo. Ela deixa, humildemente. Ele dança, bate, beija. Ela sua e agradece. Ele se lança em semente. Ela delira e adormece.)

Jesuítas e paxás, califas e marajás, czares e mandarins deslizam introvertidos. Silenciosos. Soberbos.

Os fenícios e os atlantes, os dinossauros e os hicsos, os etruscos, os hititas, os pelasgos e os assírios misturam-se às ratazanas, esquimós e fiandeiras num cordão impessoal, enregelado, passivo.

Arquimandritas e magos e cleromantes e druidas, necromantes e faquires, hierofantes, sibilas, pajés e sacerdotisas — olho no olho, pudor de bruxo, poder e medo. A fórmula cabalística sabida e silenciada — conciliábulo mudo — por respeito e gentileza.

O carrossel de prodígios. A poeira de fantasmas.

VIII

 

Os que estiverem nas grutas e cataratas,
nos regatos e nos pântanos,
nas florestas e nas casas,
no submar, nos navios,
nos sacrários, nas masmorras,
nos calabouços, nas praias,
nos patíbulos, nas rochas,
nos aviões e helicópteros,
prostíbulos, cidadelas,
nos dramas, nos cataclismas,
nas cordilheiras, nas dunas,
nas enseadas, nas docas,
nos descampados, nos clímax,
nas colinas e nas curvas

Os que estiverem nas minas,
nas filas, nas oficinas,
nos tribunais, nas tribunas,
tabernáculos, tabernas,
entabulando tabelas,
pescando pérolas raras,
desafiando duelos, planejando falcatruas, emboscadas ou motins,
pretendendo qualquer coisa,
engolindo cobra viva,
caminhando, perguntando,
respondendo, procurando

Os que estiverem, não fujam,
não disfarcem, não adiem:
procurem pela menina de cabelos cor-de-bétula,
que descobriu o segredo do canto dos rouxinóis.

IX

 

Silêncio nos Monastérios. Minaretes. Mausoléus.

Até que os sarcófagos e as catacumbas libertaram os santos e as fadas e as pitonisas e os Cavaleiros das Oitocentas Cruzadas e os antigos heróis que a memória dos Maias, dos Incas e Aztecas imortalizou em narrativas épicas, em volta das fogueiras acesas.

E todos os faraós que investiram na vida após a morte ressurgiram da poeira e da neblina das pirâmides e das épocas. E o mesmo se sucedeu com os seus servos e servas, rebanhos e pedrarias, amuletos e arquitetos.

 

É a hora do mito.
É a hora do rito.
É procissão. É processo. É princípio meio e fim.

À frente, papas e esfinges,
os gordos e os anões,
rinocerontes, donzelas,
tartarugas e sultões,
patriarcas, cardeais, gladiadores e bispos,
palhaços e trapezistas,
eunucos, malabaristas, grão-vizires e ateus.

Não é noite. Não é dia.
É uma estrela vadia, enviesada, vazia.
É raiva de uma galáxia empanzinada. Rendida.
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