E ninguém sabe.
Todos caminham
E ninguém sabe.
Mas, ninguém pergunta: anda.
Multidão de gente que precisa andar, embora o frio, a fome, o sono e os músculos doloridos não se compenetrem de que o que sempre foi, nunca mais será, porque ninguém consegue mais revigorar as ampulhetas, relógios e clepsidras e nem sequer cogita-se da necessidade de se fazer isto. E muito menos passa pela cabeça de qualquer mortal que até o dia de ontem era costume consultar-se, constantemente esses instrumentos e que, por hábito, contava-se o tempo e até o dividiam.
Até o dia de ontem tudo estava acontecendo na mais perfeita guerra, ordem e sincronismo. E por que hoje tudo mudou? Por que as frigideiras não estão chiando ao calor do fogo, e os ônibus, aviões e trens não cumprem suas rotas costumeiras?
Por que tudo mudou? Ontem, a esta hora, tudo parecia ingenuamente bom, e a brisa, o sol e a lua — sem qualquer aspecto de renúncia (ou mesmo, de cumplicidade) — compareceram com fidelidade ao compromisso cósmico.
Ai, porque hoje não é o ontem que ontem foi? E quem semeará o trigo e o centeio, agora que este hoje hojou sem escrúpulo? Quem apascentará os rebanhos e apartará das flores as ervas daninhas? E os ratos, gafanhotos, traças? E os escorpiões, quem os matará? As formigas destruirão o que de destruível for, se por acaso a bicabilidade dos pardais não se antecipar. E por que? Por que mudou?
E esta andança sem parança leva a qual cidade? Se houvesse quem soubesse um nada disto tudo, saberia tudo, porque nada sabem os itinerantes seres — outrora nominados homens e mulheres.
Nada se pode fazer. E fazer o que? Como negar a estes famintos seres pernimoventes o direito de saciarem sua fome de caminhar ao deus-dará? Qual coração destituído de caridade ergueria barricadas e obs-táculos proibitivos a esta sede corrosiva que os moveu a pular de suas camas à meia noite em ponto e os fez se desentocar brutalmente de onde quer que estivessem, e os empurrou — vestidos como estavam — a esta andarilhança?
Tudo mudou. E por que?
Todos vão. Ninguém resiste.
Os inválidos e paralíticos se recuperam de seus membros nulos e se incorporam à população ambulante. Um a um, velhos e velhas, bebês e leopardos caminham lado a lado. Individualmente. Hipnotizados.
E o vento se compraz em se espojar no espaço que ontem, possuído, é hoje intenso e vago.
Por que mudou o mundo e todos se conformam — e mais que isto — apóiam e compactuam com o golpe baixo às tradições aceitas? Por que ninguém faz nada? O soberano omite-se em razão de quê?
Policiais, soldados, guardas, carcereiros soltam dos cubículos todos os prisioneiros e ninguém se detém em minúsculo ponto de interrogação que seja?
Onde o espadejar enérgico dos generais, o pulso de ferro dos governadores, a excomunhão tonitruante dos cardeais?
O sol sumiu do céu, se extraviou, fugiu. Dez horas da manhã e o sol negou. Negrou. Não veio. Nem virá. Foi buscar refúgio na última galáxia.
E ninguém terá idéia de se conscientizar desta negligência a mais, porque a curiosidade esteve em vigor até o dia de ontem e a capacidade humana de perguntar, que de há muito ia, dia a dia, sendo desencorajada por várias circunstâncias, se viu a partir de hoje varrida definitivamente da face da Terra.
Faltam poucas horas.
E ninguém sabe.
O que sempre foi nunca mais será.
A escuridão range os dentes e resiste.
E amanhece na cidade e no mundo.
Processa-se a procissão
que progride num progresso
que não espanta nem fere,
nem agride, nem pergunta.
E não se trata de um,
nem de dois,
nem de dezenas.
É caudalosa avalanche
de carne, sangue e volume.
É lume, é luz dos archotes,
é labareda de tochas
iluminando o desfile.
Já não se trata de nada.
São autômatos.
Mecânicos.
Computadores orgânicos
em marcha, em massa, em cordão.
Já não se tratam de alguns.
É a humanidade compacta
entrelaçada inteiriça
na caminhante mania.
São continentes inteiros
Inteiros em contingentes.
Incontinenti aderindo
à doença andeja andante.