Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Marcos Resende Poemas

Marcos Resende Poemas

Apocalipse II

Escuridão e o séquito de sandálias e sapatos.
Samurais, segréis e silfos
palmilhando o pó do pânico
Regurgitando. Rugindo.

É como se fosse uma cornucópia
Esparramando horror numa toalha.
E como se fosse a madrugada besta esfaqueando a lua.

E rumo ao despenhadeiro
Celeremente caminham
Escorpiões e fantoches,
Almirantes e eremitas,
Lenhadores e morcegos
Carrascos e hamadríades.

A tropa fantasmagórica
De personagens estranhos.

O Grande Lama do Tibet
Os Mosqueteiros de França
O Homem de Neanderthal
Os Piratas do Caribe
Os Gangsters de Chicago
Os Fidalgos Espanhóis
Ivan, o Ferroviófilo
Salteadores de Estradas

O Fazedor de Brinquedos
E o Velho da Montanha
Limpadores de Chaminés
O Homem que botava ovo
O Homem que beijava pés
O Homem das Neves
O Holandês Voador
E o Judeu Errante.

E haverá silêncio até que o relógio dos séculos
manquitolando caduco balbucie a Hora Alta.

XII

Todas as aparições foram confirmadas.
As doceiras farão um doce de abóbora
com um gosto muito antigo.

E as pessoas se libertarão dos medos
como quem se purifica do mofo de uma ditadura.

XIII

Raiva e remorso — delírio.
Grito escarrado na noite.
Escuridão e declínio.
Sangue de vento. Perigo.

A hora é mágica. Fantástica. Fatídica.
A multidão semovente multimove-se, palpita.
Quem pode ver se regala, se lambuza. Precipita.

Sem tambor e sem charanga,
A humanidade caminha.
Mortos e vivos pairando
nas enxurradas, nas ruas.

Hereges e domadores,
cônsules, réus, joalheiros,
apóstatas, centopéias,
deputados e serpentes.

Marionetes e nereidas,
pigmeus e senadores,
arautos e fazendeiros
e touros mortos na arena.

Burgomestres e centauros,
minotauros, marinheiros,
cirurgiões e harpias.

E a noite que não dá conta.
E o dia que não desponta.
A noite, a noite e a agonia.

XIV


E todos os túmulos se abriram
e despejaram os músicos, quiromantes e astrólogos,
argonautas e ciganos
e viajantes do espaço, dos trópicos e oceanos
com suas caravelas, naves e espaçonaves,
cartolas e coelhos,
instrumentos e esferas encantadas.

XV




Caleidoscópio de raças. Trajetória de absurdos.
Sarapatel de miragens. Bacanal de maravilhas.

É como se fosse um circo, anfiteatro infinito.
Ah, se alguém pudesse ver da arquibancada do mundo, o despertar de dragões, o desfilar de gnomos, a frota de zepelins, o Velocino de Ouro.

A majestade e o fascínio da caravana impossível. A Rainha de Sabá (formosa como a lua) escoltada por todos os tapetes voadores de todos os gênios das mil e uma noites.

Pégaso, o cavalo voador, planando placidamente, enquanto o Pássaro Roca encabeça a esquadrilha de corujas e falcões e grifos e basiliscos, gaivotas e vampiros, pterossauros e anjos.

E todos os turbulentos deuses, de todas as épocas e mitologias, epopeias e dilúvios, transitam plenividentes, destronados e ambíguos, seguidos pelas gazelas, unicórnios e ciclopes, sereias e tuaregues, arquiduques e carunchos.

Ah, se houvesse um telescópio afunilando as imagens alucinantes do dia. Prometeu, fogo no fígado, incêndio na mão, abre alas para os rebeldes, os gigantes e os ursos, os grão-mestres e tetrarcas, caranguejos e gurus.

Cérbero, o cão do inferno, no farejar de fantasmas é mestre-sala e vigia na fileira dos coveiros, das carpideiras e crápulas. É o bloco dos sonâmbulos, dos alcaides e dos cúmplices, dos índios e bailarinas, dos jacarés e dos búfalos, do Monstro do Lago Ness, das cigarras e Valquírias.

O Rei Arthur da Távola Redonda corta o cortejo com Excalibur, sua espada encantada, com Guenevere, sua rainha impossível e Lancelot, seu amigo intocável. No horizonte, flamejando, a visão inviolada do Santo Graal — um vislumbre, um slide embaralhado.

E todos os que foram vice na vida viajam no mesmo grupo, entre leões e duendes, templários e alquimistas, tanques de guerra e mucamas, pastores e cangurus.

Ah, se alguém pudesse ver na trajetória do dia, o emaranhado de assombros, orgia de gente morta, navegantes do absurdo.

XVI

Haverá silêncio.

A caminhada persiste até o fim dos meridianos e desertos, paralelos e países.
O vento engole as cidades arrepiando os telhados.
Mas, não subsiste medo, nem solidão, nem tristeza.

Todos vão. Ninguém resiste.
A maratona evolui através dos sete mares,
sustentando-se nos ares,
ou de mãos dadas com a terra.

São antílopes e focas,
golfinhos e pernilongos,
açougueiros e leprosos
tubarões e petroleiros.

Arraias, rãs e cachorros,
barões, balões e baleias,
cavalos marinhos, elfos,
hussardos e camundongos.

No ar. No mar. E na terra.
Baralho de barafunda. Emboscada do universo.

Do fundo do Apocalipse — horizonte submerso,
submarinos acordam galeões adormecidos.

Os Vikings ressonando, aparvalhados navegam.
As carantonhas nos barcos esboçam longos gemidos.

Cleópatra e Medusa, descalças seguem por terra.
As cobras de seus cabelos se enroscam nos seios dela.

Os Tugues (laço da morte) tropeçam entorpecidos
em gigolôs e nazistas, cascaveis e rezadeiras.

No céu, um carro de fogo: Elias, nauta do tempo.
Profeta em cama de gelo planando no fim do mundo.

Cavalo bravo no céu. Zarabatana de estrela.

XVIII

Silêncio. Escuro. E a pergunta.

A procissão e o mistério prosseguem na superfície.
Mas, não subsiste medo, nem corrosão, nem suspeita.

O espaço. O cortejo. O escuro.
Os passos recompassados de todos os que caminham
ignorando e seguindo:

Os profetas e os caciques
e deuses e heróis e putas
e surdos e saltimbancos
e sádicos e sambistas
feras, frades, freiras, fracos
filósofos e fiscais
juizes, rabinos, rábulas
funcionários e escrivães
mentecaptos, capachos
ladinos, ladrões e atletas
marqueses, condes, pedreiros
costureiras e ministros
policiais e viragos
jornalistas, analistas,
estagiários, românticos,
maconheiros, normalistas
corretores, corredores
propagandistas e ateus
veterinários, filantes
artistas, químicos, tísicos
pescadores, milionários
missionários, mísseis, missas
demissionários e omissos
astrônomos e gastrônomos
catequistas e taquígrafos
mordomos, bajuladores
diretores e ratinhos
bancários, bestas, fascistas
emboabas, baobás
pastorinhas, facadistas
construtores, detratores
tradutores e tratores
militares, oculistas
engolidores de espada
amoladores de faca
arrombadores de cofres
palpiteiros, moralistas
clientes, crentes, crianças
escafandristas, ourives
gramáticos, tico-ticos
mercenários, marceneiros
verdugos e verdureiros
professoras e madrastas
moleiros, moles, moleques, leques, mós e leiloeiros
marxistas e maquinistas
esportistas e abobrinhas
estrátegos, traficantes
ociosos e ansiosos
sátrapas, sapateiros, trapaceiros e trapistas
encantadores de cobras
cobradores e barítonos
protestantes e porteiros
lambisgóias e lombrigas
facínoras, sacristãos
pierrôs, prestamistas, cornos
puritanos, anarquistas
congregados marianos
cafetões e cafelistas
censores e ascensoristas
rainhas, reis e galinhas
saracuras e espantalhos
pediatras e pedintes
paraplégicos e alérgicos
curtidores e coristas
sifilíticos, políticos
ciclistas e pipoqueiros
comerciantes e esquilos
católicos e cristãos
salafrários e sacrílegos
cineastas e azeitonas
sine-qua-nons e sineiros
vigaristas e vigários
invejosos e aluninhos
astronautas e tatus
fariseus e carvoeiros
pintores, pintos, piranhas
farândolas e fandangos
centuriões, curiangos
debutantes e gorilas
locutores, surdo-mudos
avalistas, vira-latas
pára-quedistas e alcoólatras
racistas e estupradores
viúvas e uvirunduns
caipiras e caiporas
morubixabas e bichas
amadores, mamadores, ouvidores e vidrilhos
embaixadores, baixotes
chupins, cha-cha-cha e chatos
cardiologistas, lojistas
barbeiros e barbatanas
flibusteiros e arcebispos
capangas e pangarés
valentes, levantes, lentes
patriotas e avestruzes
ventríloquos e ventrícolas
herdeiros profissionais
liberais e libertinos
matemáticos e mate
dissidentes e dentistas
bem-te-vis e detetives
acadêmicos e micos
varejões e varejistas
direitos e advogados
engenheiros ou relógios
agentes e viajantes
catedráticos, titicas
baratas e burocratas
vendedores e vendidos
agiotas e jurados
gente bem e gente boa
sogras, sapos, ogros, grilos, agricultores, grevistas
fotógrafos e elefantes
primeiros da classe e cônegos
poetisas e mulheres
prolixos e lixeiros
croquis, crocotós, croquetes, prós e contras, contra-regras
contratados e tratantes
ritmistas, logarítimos, marítimos e retretas

filhas de papai
filhas-de-maria
filhas-de-peixe
filhas-da-puta
latinistas e stalinistas
vegetarianos, presbiterianos
latifundiários e leiteiros.

XIX

De repente, o abismo.

O primeiro homem de uma civilização perdida, jamais conhecida, nem sequer suposta, é expelido entre labaredas e cinzas de um vulcão que acabava de nascer.

A hora é mágica, fantástica, pacífica.

Uma faixa de arco-íris anuncia a primeira estrela aparecida após o ê-xodo do sol.
É uma estrela cadente?
Ninguém sabe o que é,
nem se admira
nem chora,
nem sorri,
nem range os dentes,
nem pergunta,
nem comenta.

A hora é mágica, e as gargantas ao mesmo tempo se agitam, as cordas vocais se animam e aparece uma canção.

As bruxas e os mendigos
os oprimidos e os sábios
os alfaiates e os tímidos
todos cantando, cantando
e olhando para o céu.

É uma estrela caindo.
É ouro é diamante.
É pérola é madrepérola é chuva
é meteoro
é tudo é nada é gemido
é um pedaço de luz.

É uma estrela, um cometa,
um planeta, um meteoro.
É um disco voador.
Todos esperam sem pressa,
como se nada importasse.
Mas, o silêncio voltou.
O canto murchou nos lábios.

Da estrela desce uma forma jamais vista por olhos humanos. É um astronauta? Um pirata? Uma boneca de louça? Uma garrafa de vidro? Um invasor? Uma flor? Todos enxergam com nitidez e precisão, mas estava escrito que o cérebro humano não fora planejado para identificar, comparar ou rotular aquela entidade estranha.

Mas, de repente, todos viram duas mãos resplandecentes — líquido elétrico — solavanco cósmico — metralhadora fluídica.

E o que acontece depois nunca será registrado nos papiros nos livros ou computadores. Porque todas as culpas e remorsos benefícios e fracassos se confundiram e se anularam.

E não ficou pedra sobre pedra. E as desavenças e as crenças e os monumentos e as taras foram extirpados e engolidos pelo mesmo rodamoinho desencadeado pelas mãos terríveis.


XX

Um dia, o sol voltou a brilhar, mas ninguém notou porque quase tudo havia deixado de interessar e perdera o antigo sentido. E os mortos se reuniram aos vivos e constatou-se que nunca mais nasceu ou morreu alguém sobre a face da terra e todos se esqueceram de tudo o que souberam fizeram ou sentiram e agora estão embalados embalsamados monopolizados envolvidos por uma ideia fixa. Que virou o centro de tudo. Que virou o centro do mundo. Que não tem nome cheiro cor

Outubro, 1974 

ILUSTRAÇÃO:
Aloísio Abreu
Gustavo Ferreira
Alexandre Lobianco


Índice Poema
   Índice Geral 

Poemas

  •  
  • Pesquisar

     

    Marcos Resende