Eu vou morrer, Karisme. Amarre tudo em seu pescoço, e passe por mim. Estou passando com as águas e o moinho, aguente: vou passar.
É uma roda: rode, não acuda. Eu sou eu, aconteci, teci meu abandono no bojo de teu sangue, ensanguentei teus plenilúnios, alucinei teu sono, mas eu vou, é vela: revela, vale, eu vôo.
Nasci numa montanha e foi tudo instinto. Cobri minha nudez da palha do palmito. É isso: enrodilhei teu corpo numa cordilheira e te consumi.
Agora, vem me consolar, que é hora de consolo. Vem pousar teu medo: não vacile.
Eu vou: tranquilo transe intruso. Transito: vou. Eu mato: entenda. Mate: eu vou.
Mas, o que é isso? De repente, eu tento. Tente. Tonto. Tanto entrocamento. Eu muito à vontade numa isolação irracional. Com a certeza tesa de que já não existe mais nada por acontecer.
Karisme, o que é isso? Eu me vejo de repente roendo o seu pescoço. É como se houvesse um osso e um dente único canino canhoto que roi roi roi.
É dor, Karisme e eu me aparto da tristeza e do ódio, mas acuso: doi.
É como se ninguém mais fosse. É como se ninguém mais desse. É como se ninguém morresse.
Rói, Karisme, temperamental e ausente. Morde nos teus dentes minha ausência e sangre. Embrenha, berre, sangue, alunação pungente. Eu me dou inteiro: corta, é teu — evolução na lama, aurore — eu mato: entenda.
E vagarosamente me descolo de teu colo cálido com a mansidão macia das serpentes. Pisa, é teu. É dor e doi, mas pisa. Faz acontecer amor a mais, amai, mas crede, crie. Grite — endoideceu o dia. Debrucei demais num desespero, acorda! Vem, que eu faço ficar roxo, nem que o dia se funda em maldição total, nem que eu me gangrene todo na descoberta de teu ódio, nem que eu me despedace e me esfacele no teu vômito, nem que eu morra... mate e me olhe: crie!
Eu violei a clemência da penumbra — ela sorriu. A bruma debulhou o sangue da manhã. O sangue da manhã — o sangue. Esganiçado percutir embrutecido.
Envidracei o teu olhar no alumbramento — estilhaçou. Bebi da fonte imperecível — pereci. É vela, vai — levanta teu desespero acima de qualquer malícia.
Karisme, joga o cântaro no regato, lava a fímbria de teu vestido e desmaia no verde, que te quero ver-te que te quero pássaro ambivalente e plenilúcido.
Ai, desenrolar de teus escrúpulos alucinando as ramas, esparramando rumos na explosão deserta.
Ah, desenvolver dos álamos nas alamedas — meu peito é seco, desgovernei o ritmo ensimesmado das torrentes, e constatei o desespero dos séculos, e espreitei o deboche dos pêndulos, e emudeci na miragem dos pântanos. Vai, Karisme em plenimar candente — escureceu. Eu me emprestei a sombra das grutas e falei de crepúsculos. Mas, teus lábios têm o mistério das maçãs: adormeci.
Ah, Karisme, me fala. É um lábio lânguido devassando lendas. Volitar. Nuvem e nave. Névoa e tempestade. Navegação costeira em teus cabelos tímidos.
Ah, solidão. Soluço, solução inerte. Meu peito no teu. E a madrugada, vai, vacila desespera e fita o embranquecer dos punhais na lua morta, o soluçar do cais na tua porta, meu coração pendente entre a alvorada e o dia.
Karisme, Karisme, não vacile, não cometa. Não existe mais perigo em meu planeta, não.
Pulei estrelas e estradas, vaguei viagens, vinhedos, planei penhascos e andrômedas e vinguei voar ligeiro, pelo cheiro dos moluscos, pela fome dos desertos.
Karisme, Karisme, não respire, não rejeite, não respeite o peito seu em polvorosa, não.
Rompi roupagens e panos, rumei o meio dos medos, desfiz o fio das brumas e em algumas, renasci, pelo cheiro dos crisântemos, pela fome das sementes.
Cacei caçambas à-toa. À tona então me voltei. Verti ao sumo das águas, várias vagas conheci, pelo cheiro das anêmonas, pela fome das mandrágoras.
Karisme, Karisme, vamos ao campo, que não tarda o amadurecer das amapolas, e as rolas nos primeiros passos, com os primeiros pássaros passeiam pelas flores entreabertas. Não custa. Acorde. Surja na manhã mañana. Carece de você o orvalho, o vegetal, o tempo manhoso. Acorde. Esparramei você nos pólens dos gerânios, antes das chuvas. Esparramei você nos pólens de gerânios escolhidos. E permaneci na espreita, como em desespero, como em desenlace.
Fugi do fogo e da fúria, furei o inferno de cera, assim, refiz meu silêncio. Expus espasmos e penas, apenas pisei o pó. Enlueceu na alameda e na lenda luarou. Karisme, cara, carinho. Carência, crise, canhão
Karisme, carabina-cano-cal e tempestade. Estrela e trilha ― lagoa flácida de luz. Enlueceu, enluejou ― eu vago, vogo, volto e vou e venho e sou: sol esquartejado, submerso em suas mãos.
Os figos já se desprendem dos caules. As romãs estilhaçadas estalam e se extrovertem, enquanto seus bagos vermelhos perdem o viço. Os últimos lenhadores desocupam. Desacampam. E sonolento e lento lá se vai bem longe o canto das mulheres que colheram o trigo. ― Estrela entre as estrelas, venha ver o vale: os figos já se desprendem dos galhos e as fiandeiras se debruçam nos fusos.
A cotovia buliu nos pingentes de pedra. A embarcação cursou os espinheiros confusos. E tudo se arrumou em seu lugar de origem.
Venha, virgem, ver o sangue das clepsidras desfeito em vinho, em vão, em uva, em chuva, em mel, em mirra, na manhã mañana.
Venha, virgem, agora, embora a relva não conserve a mesma seiva e as madressilvas quase desfaleçam. Venha, antes que desfaleça eu mesmo de amor, pois, sua ausência embruteceu meu sono pungente e insolúvel, descrente e desnudo, consciente de tudo, consciente e contudo carente de paz.
Faltam poucas horas. E ninguém sabe. Todos caminham E ninguém sabe. Mas, ninguém pergunta: anda.
Multidão de gente que precisa andar, embora o frio, a fome, o sono e os músculos doloridos não se compenetrem de que o que sempre foi, nunca mais será, porque ninguém consegue mais revigorar as ampulhetas, relógios e clepsidras e nem sequer cogita-se da necessidade de se fazer isto. E muito menos passa pela cabeça de qualquer mortal que até o dia de ontem era costume consultar-se, constantemente esses instrumentos e que, por hábito, contava-se o tempo e até o dividiam.
Até o dia de ontem tudo estava acontecendo na mais perfeita guerra, ordem e sincronismo. E por que hoje tudo mudou? Por que as frigideiras não estão chiando ao calor do fogo, e os ônibus, aviões e trens não cumprem suas rotas costumeiras?
Por que tudo mudou? Ontem, a esta hora, tudo parecia ingenuamente bom, e a brisa, o sol e a lua — sem qualquer aspecto de renúncia (ou mesmo, de cumplicidade) — compareceram com fidelidade ao compromisso cósmico.
Ai, porque hoje não é o ontem que ontem foi? E quem semeará o trigo e o centeio, agora que este hoje hojou sem escrúpulo? Quem apascentará os rebanhos e apartará das flores as ervas daninhas? E os ratos, gafanhotos, traças? E os escorpiões, quem os matará? As formigas destruirão o que de destruível for, se por acaso a bicabilidade dos pardais não se antecipar. E por que? Por que mudou?
E esta andança sem parança leva a qual cidade? Se houvesse quem soubesse um nada disto tudo, saberia tudo, porque nada sabem os itinerantes seres — outrora nominados homens e mulheres.
Nada se pode fazer. E fazer o que? Como negar a estes famintos seres pernimoventes o direito de saciarem sua fome de caminhar ao deus-dará? Qual coração destituído de caridade ergueria barricadas e obs-táculos proibitivos a esta sede corrosiva que os moveu a pular de suas camas à meia noite em ponto e os fez se desentocar brutalmente de onde quer que estivessem, e os empurrou — vestidos como estavam — a esta andarilhança?
Tudo mudou. E por que?
Todos vão. Ninguém resiste. Os inválidos e paralíticos se recuperam de seus membros nulos e se incorporam à população ambulante. Um a um, velhos e velhas, bebês e leopardos caminham lado a lado. Individualmente. Hipnotizados. E o vento se compraz em se espojar no espaço que ontem, possuído, é hoje intenso e vago.
Por que mudou o mundo e todos se conformam — e mais que isto — apóiam e compactuam com o golpe baixo às tradições aceitas? Por que ninguém faz nada? O soberano omite-se em razão de quê? Policiais, soldados, guardas, carcereiros soltam dos cubículos todos os prisioneiros e ninguém se detém em minúsculo ponto de interrogação que seja? Onde o espadejar enérgico dos generais, o pulso de ferro dos governadores, a excomunhão tonitruante dos cardeais?
O sol sumiu do céu, se extraviou, fugiu. Dez horas da manhã e o sol negou. Negrou. Não veio. Nem virá. Foi buscar refúgio na última galáxia. E ninguém terá idéia de se conscientizar desta negligência a mais, porque a curiosidade esteve em vigor até o dia de ontem e a capacidade humana de perguntar, que de há muito ia, dia a dia, sendo desencorajada por várias circunstâncias, se viu a partir de hoje varrida definitivamente da face da Terra.
Faltam poucas horas. E ninguém sabe. O que sempre foi nunca mais será. A escuridão range os dentes e resiste. E amanhece na cidade e no mundo.
II
A hora é mágica, fantástica, pacífica. Processa-se a procissão que progride num progresso que não espanta nem fere, nem agride, nem pergunta.
E não se trata de um, nem de dois, nem de dezenas. É caudalosa avalanche de carne, sangue e volume. É lume, é luz dos archotes, é labareda de tochas iluminando o desfile.
Já não se trata de nada. São autômatos. Mecânicos. Computadores orgânicos em marcha, em massa, em cordão.
Já não se tratam de alguns. É a humanidade compacta entrelaçada inteiriça na caminhante mania. São continentes inteiros Inteiros em contingentes. Incontinenti aderindo à doença andeja andante.
III
E todos os feiticeiros trouxeram cataventos. E todos os túmulos se abriram e despejaram poetas, menestreis e mágicos.
E todos os gondoleiros louros atravessaram os canais, os farois e os umbrais das poesias mais tempestuosas, das saudades mais amargas, das promessas vagas, lancinantes mágoas, procurando a luz em lâminas de alento.
Singram sensações que desconhecem príncipes e princípios, porque todos os lemes e lemas foram esquecidos, como perderam o sentido reis e leis, bulas e bússolas, rotas e rotinas, couraças e ancoradouros, promontórios e semáforos.
IV
Os que estiverem nas brumas, nas penumbras, nas necrópoles
Os que estiverem brincando, padecendo, machucando, descrevendo ou destroçando, troçando, escrevendo ou rindo
Os que estiverem despidos, distraídos ou perdidos e — principalmente os que não foram traídos e não obstante, traíram até seus pensamentos mais íntimos
Os que estiverem não fujam, não disfarcem, não adiem: peguem martelos e pás, picaretas e guindastes, e desenterrem seus mortos, que, através de dinastias, reinados e tiranias, foram sepultados vivos, cimentados nas paredes dos castelos, dos mosteiros, sufocados nas cisternas, enterrados nas varandas.
V
Enquanto processa-se a procissão e nem por isso o silêncio desiste de desexistir, eis que — no íntimo da África, um babalorixá assina, um pai-de-santo assinala, um ogan sibila e abala o bumbo e bole no atabaque. Bate no tan-tan. E o batebã rebate pela selva toda. De todas as bandeiras, bandas e arrabaldes comparecem tochas, lanças e guerreiros.
É o povo em fé à batucada e ao rei; ao santo e ao deus das maravilhas roxas, dos canaviais, das chuvas, da mulher de mel.
É a hora do mito. É a hora do rito. É a hora em que o homem procura uma ponte que aponte o caminho que vença a distância interposta entre a terra e o Senhor das estrelas.
Tambor de Luanda é Tambor da Bahia. Se o vento espalhou, não se viu. Nem valeu. Ninguém combinou. Se o galo cantou, não se ouviu, nem contou. Ninguém percebeu. Coincidência talvez. Num quase assustando, zabumba e agogô, tumbadora, bongô retumbaram na taba. No escuro. No mar. No silêncio.
Bumbou batebum no terreiro sem ordem, sem chefe, sem hora, nem dia. Ninguém na palmeira. Ninguém avisado. Sem banho de erva. Incenso apagado.
Milagre? Castigo? Brinquedo de Exu? Pergunta não houve. Vestiram de branco.
Terreiro de preto é congal e é sagrado. E se alguém começou no batuque e na dança, não há quem rejeite. Estão prontos, se apressam e se deitam na areia e no sal.
Se cantam seus pontos, os santos se achegam. Revestem seus corpos. Oxóssi das Matas despacha, aconselha, dá passes e dança.
Tambor de Luanda é Tambor de Umbanda. E todas as tribos, de todas as terras, países, raízes e cores e coros e povos, costumes, se multimoveram no mesmo princípio.
É a dança que dança e redança e não cansa e não pára, não mata, nem fere e regira e revira e retrança no vira-que-vira, no cai-e-levanta; e o rumor compassado comanda e desmanda, marcante, cantante, ficando e fincando no sangue, no bam e sistema nervoso, num bate-que-bum, taque-tabe, rebum, sacum-bum, sacum-bate.
É a fé. Candomblé. É o jogo de búzios. Oxum cochichando nas conchas do mar. No axé, orixás chamejantes xingando, chispando, fechando despachos e ebós. Eparrei! Iyakêkêrês, berimbaus, caxixis, a dança das cobras em Oxumarê. O sangue das pombas, a lua encantada descendo nas tendas, luando os pejis.
E a lua é Luanda montando nas moças, deixando em seus ombros um gosto de mato, um charme de bicho, um ar de pantera, um dorso de fêmea cheirando alecrim.
É quase um rodamoinho, carisma ou cataclisma. São caboclos, pretos velhos, aptos e ávidos para incorporar seus médiuns e presidir a sessão de prodígios, no intercâmbio entre o homem que desconhece e crê, e se mancomuna com o todo-poder da sombra, transubstanciado em espectros que falam a mesma língua, o mesmo dialeto.
Rabo-de-arraia. Rá. Raiou. Zimbo-birê. Okê arô. Angola pequena. Jandá-iê. Zem. Faca de ponta. Co-co-ro-cou. Colares de contas. Za-zuê. Zagaia zuniu. Za-zoou. Angola-iê. Ô-timbora.
Incenso defuma. Os santos comandam, dão ordens, consolam, conselham, dão passes. Descruzam, descargam, carregam, milongam — ô-colê. É o fumo. A cachaça. O incenso. O charuto. O cachimbo. O suor gote-jante na pele, no peito. Aiê-colê, colaiá. É o fumo. A cachaça, o in-censo, o charuto, o cachimbo, é Exu, é Xangô, é Ogum, Iemanjá. É o fumo a cachaça o incenso o charuto o cachimbo o suor é o fumo a cachaça o incenso o cachimbo o charuto é o fumo a cachaça o incenso o charuto o suor o suor, laroiê, Exu!
Os encantados e ekédis, iaôs e orixás, os obás e os cambones, súbito saem da dança. Batem cabeça e caminham.
VI
Silêncio nas cerejeiras. Nos fiordes. Nas giestas.
No Oriente, os muçulmanos e budistas, os Veneráveis Adoradores do Fogo, os trezentos mil deuses da Índia e os brâmanes e os párias e a interminável legião de prosélitos das diversas seitas que proliferam no Japão, na China e na Pérsia, acenderam archotes, lanternas, lamparinas, candeias e candelabros porque um terremoto se juntou à insinuação do vento do deserto.
E antigas profecias, alfarrábios e papiros renasceram na memória dos monges octogenários. E velhas arcas foram removidas dos sacrários proibidos. E um a um, os mistérios indevassáveis emergiram do ostracismo e obscuridade dos milênios.
O Superior da Venerável Ordem paramentado pelo capuz vermelho que a ocasião impunha, empunha tremulamente um alfanje, e ordena que os fieis cubram a cabeça de cinzas e entoem os cânticos habituais de expiação.
E um a um, os lacres e selos esparramam-se ao chão e os três pergaminhos que existiam foram desvendados e vasculhados e assimilados e difundidos. E os que puderam ver e ouvir o que estava escrito compreenderam, por fim, que deveriam se misturar à procissão que havia e a que ninguém fugia.
VII
A hora é mágica. Letárgica. Terrível.
Os mortos se reúnem aos vivos e milênios se convivem. Mas, não se chocam: desfilam.
Os árabes e os hebreus, os sumérios e caldeus, lemurianos e acádios amortecidos levitam, aliviados do peso das sagas e das conquistas, das pilhagens e pelejas.
As amazonas galopam em cavalos antropófagos — escudo e lança na mão — corações enrijecidos. Os tártaros de Kublai Khan, amados até os dentes, ardentes como meninos esparramam-se entre elas. Batalha de corpo a corpo. Caçada entre macho e virgem.
(Ela, correndo, tropeça. Ele espera. Ela se esconde. Ele acha e quase pega. Ela escorrega e escapole, pula pedra, pula cerca, pula no rio toda nua, sai na outra margem, respinga, resplandece, insinua. Ele aparece. Ela corre. Ele alcança, captura. Ela morde, foge, cansa, rola no chão, desfalece, finge que chora, se rende. Ele cavalga seu corpo. Ela deixa, humildemente. Ele dança, bate, beija. Ela sua e agradece. Ele se lança em semente. Ela delira e adormece.)
Jesuítas e paxás, califas e marajás, czares e mandarins deslizam introvertidos. Silenciosos. Soberbos.
Os fenícios e os atlantes, os dinossauros e os hicsos, os etruscos, os hititas, os pelasgos e os assírios misturam-se às ratazanas, esquimós e fiandeiras num cordão impessoal, enregelado, passivo.
Arquimandritas e magos e cleromantes e druidas, necromantes e faquires, hierofantes, sibilas, pajés e sacerdotisas — olho no olho, pudor de bruxo, poder e medo. A fórmula cabalística sabida e silenciada — conciliábulo mudo — por respeito e gentileza.
O carrossel de prodígios. A poeira de fantasmas.
VIII
Os que estiverem nas grutas e cataratas, nos regatos e nos pântanos, nas florestas e nas casas, no submar, nos navios, nos sacrários, nas masmorras, nos calabouços, nas praias, nos patíbulos, nas rochas, nos aviões e helicópteros, prostíbulos, cidadelas, nos dramas, nos cataclismas, nas cordilheiras, nas dunas, nas enseadas, nas docas, nos descampados, nos clímax, nas colinas e nas curvas
Os que estiverem nas minas, nas filas, nas oficinas, nos tribunais, nas tribunas, tabernáculos, tabernas, entabulando tabelas, pescando pérolas raras, desafiando duelos, planejando falcatruas, emboscadas ou motins, pretendendo qualquer coisa, engolindo cobra viva, caminhando, perguntando, respondendo, procurando
Os que estiverem, não fujam, não disfarcem, não adiem: procurem pela menina de cabelos cor-de-bétula, que descobriu o segredo do canto dos rouxinóis.
IX
Silêncio nos Monastérios. Minaretes. Mausoléus.
Até que os sarcófagos e as catacumbas libertaram os santos e as fadas e as pitonisas e os Cavaleiros das Oitocentas Cruzadas e os antigos heróis que a memória dos Maias, dos Incas e Aztecas imortalizou em narrativas épicas, em volta das fogueiras acesas.
E todos os faraós que investiram na vida após a morte ressurgiram da poeira e da neblina das pirâmides e das épocas. E o mesmo se sucedeu com os seus servos e servas, rebanhos e pedrarias, amuletos e arquitetos.
X
É a hora do mito. É a hora do rito. É procissão. É processo. É princípio meio e fim.
À frente, papas e esfinges, os gordos e os anões, rinocerontes, donzelas, tartarugas e sultões, patriarcas, cardeais, gladiadores e bispos, palhaços e trapezistas, eunucos, malabaristas, grão-vizires e ateus.
Não é noite. Não é dia. É uma estrela vadia, enviesada, vazia. É raiva de uma galáxia empanzinada. Rendida.
Silêncio nos horizontes e nos plátanos e nas pétalas.
Escuridão e o séquito de sandálias e sapatos. Samurais, segréis e silfos palmilhando o pó do pânico Regurgitando. Rugindo.
É como se fosse uma cornucópia Esparramando horror numa toalha. E como se fosse a madrugada besta esfaqueando a lua.
E rumo ao despenhadeiro Celeremente caminham Escorpiões e fantoches, Almirantes e eremitas, Lenhadores e morcegos Carrascos e hamadríades.
A tropa fantasmagórica De personagens estranhos.
O Grande Lama do Tibet Os Mosqueteiros de França O Homem de Neanderthal Os Piratas do Caribe Os Gangsters de Chicago Os Fidalgos Espanhóis Ivan, o Ferroviófilo Salteadores de Estradas
O Fazedor de Brinquedos E o Velho da Montanha Limpadores de Chaminés O Homem que botava ovo O Homem que beijava pés O Homem das Neves O Holandês Voador E o Judeu Errante.
E haverá silêncio até que o relógio dos séculos manquitolando caduco balbucie a Hora Alta.
XII
Todas as aparições foram confirmadas. As doceiras farão um doce de abóbora com um gosto muito antigo.
E as pessoas se libertarão dos medos como quem se purifica do mofo de uma ditadura.
XIII
Raiva e remorso — delírio. Grito escarrado na noite. Escuridão e declínio. Sangue de vento. Perigo.
A hora é mágica. Fantástica. Fatídica. A multidão semovente multimove-se, palpita. Quem pode ver se regala, se lambuza. Precipita.
Sem tambor e sem charanga, A humanidade caminha. Mortos e vivos pairando nas enxurradas, nas ruas.
Hereges e domadores, cônsules, réus, joalheiros, apóstatas, centopéias, deputados e serpentes.
Marionetes e nereidas, pigmeus e senadores, arautos e fazendeiros e touros mortos na arena.
Burgomestres e centauros, minotauros, marinheiros, cirurgiões e harpias.
E a noite que não dá conta. E o dia que não desponta. A noite, a noite e a agonia.
XIV
E todos os túmulos se abriram e despejaram os músicos, quiromantes e astrólogos, argonautas e ciganos e viajantes do espaço, dos trópicos e oceanos com suas caravelas, naves e espaçonaves, cartolas e coelhos, instrumentos e esferas encantadas.
XV
Caleidoscópio de raças. Trajetória de absurdos. Sarapatel de miragens. Bacanal de maravilhas.
É como se fosse um circo, anfiteatro infinito. Ah, se alguém pudesse ver da arquibancada do mundo, o despertar de dragões, o desfilar de gnomos, a frota de zepelins, o Velocino de Ouro.
A majestade e o fascínio da caravana impossível. A Rainha de Sabá (formosa como a lua) escoltada por todos os tapetes voadores de todos os gênios das mil e uma noites.
Pégaso, o cavalo voador, planando placidamente, enquanto o Pássaro Roca encabeça a esquadrilha de corujas e falcões e grifos e basiliscos, gaivotas e vampiros, pterossauros e anjos.
E todos os turbulentos deuses, de todas as épocas e mitologias, epopeias e dilúvios, transitam plenividentes, destronados e ambíguos, seguidos pelas gazelas, unicórnios e ciclopes, sereias e tuaregues, arquiduques e carunchos.
Ah, se houvesse um telescópio afunilando as imagens alucinantes do dia. Prometeu, fogo no fígado, incêndio na mão, abre alas para os rebeldes, os gigantes e os ursos, os grão-mestres e tetrarcas, caranguejos e gurus.
Cérbero, o cão do inferno, no farejar de fantasmas é mestre-sala e vigia na fileira dos coveiros, das carpideiras e crápulas. É o bloco dos sonâmbulos, dos alcaides e dos cúmplices, dos índios e bailarinas, dos jacarés e dos búfalos, do Monstro do Lago Ness, das cigarras e Valquírias.
O Rei Arthur da Távola Redonda corta o cortejo com Excalibur, sua espada encantada, com Guenevere, sua rainha impossível e Lancelot, seu amigo intocável. No horizonte, flamejando, a visão inviolada do Santo Graal — um vislumbre, um slide embaralhado.
E todos os que foram vice na vida viajam no mesmo grupo, entre leões e duendes, templários e alquimistas, tanques de guerra e mucamas, pastores e cangurus.
Ah, se alguém pudesse ver na trajetória do dia, o emaranhado de assombros, orgia de gente morta, navegantes do absurdo.
XVI
Haverá silêncio.
Um silêncio e um milagre. Como se fosse um sinal. Porque, do Egito, da Atlântida, da Hélade, da Babilônia, da Galiléia e da China Imperial partirão os escravos, os explorados, os loucos, os guerrilheiros e as múmias e todos os que padeceram doenças, martírios e enxovalhos debaixo de púlpitos, tribunais e monarquias.
Os que estiverem nos bares, nas estações, nas favelas, nos hospitais, nos garimpos, nas carruagens, nas fábricas
Os que estiverem nas festas, nos caminhões, nos moinhos, nos trigais, nos campanários, nas chaminés, nos comícios Os que estiverem nas praças, nas serenatas, nos diques, nas charnecas, nos bilhares, nos cafezais, nas charruas
Os que estiverem não fujam, não disfarcem, não adiem: o vento soprou mais novo, agora é prova de fogo. Revolução. Labirinto.
XVII
O sol buscou refúgio na última galáxia.
A caminhada persiste até o fim dos meridianos e desertos, paralelos e países. O vento engole as cidades arrepiando os telhados. Mas, não subsiste medo, nem solidão, nem tristeza.
Todos vão. Ninguém resiste. A maratona evolui através dos sete mares, sustentando-se nos ares, ou de mãos dadas com a terra.
São antílopes e focas, golfinhos e pernilongos, açougueiros e leprosos tubarões e petroleiros.
Arraias, rãs e cachorros, barões, balões e baleias, cavalos marinhos, elfos, hussardos e camundongos.
No ar. No mar. E na terra. Baralho de barafunda. Emboscada do universo.
Do fundo do Apocalipse — horizonte submerso, submarinos acordam galeões adormecidos.
Os Vikings ressonando, aparvalhados navegam. As carantonhas nos barcos esboçam longos gemidos.
Cleópatra e Medusa, descalças seguem por terra. As cobras de seus cabelos se enroscam nos seios dela.
Os Tugues (laço da morte) tropeçam entorpecidos em gigolôs e nazistas, cascaveis e rezadeiras.
No céu, um carro de fogo: Elias, nauta do tempo. Profeta em cama de gelo planando no fim do mundo.
Cavalo bravo no céu. Zarabatana de estrela.
XVIII
Silêncio. Escuro. E a pergunta.
A procissão e o mistério prosseguem na superfície. Mas, não subsiste medo, nem corrosão, nem suspeita.
O espaço. O cortejo. O escuro. Os passos recompassados de todos os que caminham ignorando e seguindo:
Os profetas e os caciques e deuses e heróis e putas e surdos e saltimbancos e sádicos e sambistas feras, frades, freiras, fracos filósofos e fiscais juizes, rabinos, rábulas funcionários e escrivães mentecaptos, capachos ladinos, ladrões e atletas marqueses, condes, pedreiros costureiras e ministros policiais e viragos jornalistas, analistas, estagiários, românticos, maconheiros, normalistas corretores, corredores propagandistas e ateus veterinários, filantes artistas, químicos, tísicos pescadores, milionários missionários, mísseis, missas demissionários e omissos astrônomos e gastrônomos catequistas e taquígrafos mordomos, bajuladores diretores e ratinhos bancários, bestas, fascistas emboabas, baobás pastorinhas, facadistas construtores, detratores tradutores e tratores militares, oculistas engolidores de espada amoladores de faca arrombadores de cofres palpiteiros, moralistas clientes, crentes, crianças escafandristas, ourives gramáticos, tico-ticos mercenários, marceneiros verdugos e verdureiros professoras e madrastas moleiros, moles, moleques, leques, mós e leiloeiros marxistas e maquinistas esportistas e abobrinhas estrátegos, traficantes ociosos e ansiosos sátrapas, sapateiros, trapaceiros e trapistas encantadores de cobras cobradores e barítonos protestantes e porteiros lambisgóias e lombrigas facínoras, sacristãos pierrôs, prestamistas, cornos puritanos, anarquistas congregados marianos cafetões e cafelistas censores e ascensoristas rainhas, reis e galinhas saracuras e espantalhos pediatras e pedintes paraplégicos e alérgicos curtidores e coristas sifilíticos, políticos ciclistas e pipoqueiros comerciantes e esquilos católicos e cristãos salafrários e sacrílegos cineastas e azeitonas sine-qua-nons e sineiros vigaristas e vigários invejosos e aluninhos astronautas e tatus fariseus e carvoeiros pintores, pintos, piranhas farândolas e fandangos centuriões, curiangos debutantes e gorilas locutores, surdo-mudos avalistas, vira-latas pára-quedistas e alcoólatras racistas e estupradores viúvas e uvirunduns caipiras e caiporas morubixabas e bichas amadores, mamadores, ouvidores e vidrilhos embaixadores, baixotes chupins, cha-cha-cha e chatos cardiologistas, lojistas barbeiros e barbatanas flibusteiros e arcebispos capangas e pangarés valentes, levantes, lentes patriotas e avestruzes ventríloquos e ventrícolas herdeiros profissionais liberais e libertinos matemáticos e mate dissidentes e dentistas bem-te-vis e detetives acadêmicos e micos varejões e varejistas direitos e advogados engenheiros ou relógios agentes e viajantes catedráticos, titicas baratas e burocratas vendedores e vendidos agiotas e jurados gente bem e gente boa sogras, sapos, ogros, grilos, agricultores, grevistas fotógrafos e elefantes primeiros da classe e cônegos poetisas e mulheres prolixos e lixeiros croquis, crocotós, croquetes, prós e contras, contra-regras contratados e tratantes ritmistas, logarítimos, marítimos e retretas
filhas de papai filhas-de-maria filhas-de-peixe filhas-da-puta latinistas e stalinistas vegetarianos, presbiterianos latifundiários e leiteiros.
XIX
De repente, o abismo.
O primeiro homem de uma civilização perdida, jamais conhecida, nem sequer suposta, é expelido entre labaredas e cinzas de um vulcão que acabava de nascer.
A hora é mágica, fantástica, pacífica.
Uma faixa de arco-íris anuncia a primeira estrela aparecida após o ê-xodo do sol. É uma estrela cadente? Ninguém sabe o que é, nem se admira nem chora, nem sorri, nem range os dentes, nem pergunta, nem comenta.
A hora é mágica, e as gargantas ao mesmo tempo se agitam, as cordas vocais se animam e aparece uma canção.
As bruxas e os mendigos os oprimidos e os sábios os alfaiates e os tímidos todos cantando, cantando e olhando para o céu.
É uma estrela caindo. É ouro é diamante. É pérola é madrepérola é chuva é meteoro é tudo é nada é gemido é um pedaço de luz.
É uma estrela, um cometa, um planeta, um meteoro. É um disco voador. Todos esperam sem pressa, como se nada importasse. Mas, o silêncio voltou. O canto murchou nos lábios.
Da estrela desce uma forma jamais vista por olhos humanos. É um astronauta? Um pirata? Uma boneca de louça? Uma garrafa de vidro? Um invasor? Uma flor? Todos enxergam com nitidez e precisão, mas estava escrito que o cérebro humano não fora planejado para identificar, comparar ou rotular aquela entidade estranha.
Mas, de repente, todos viram duas mãos resplandecentes — líquido elétrico — solavanco cósmico — metralhadora fluídica.
E o que acontece depois nunca será registrado nos papiros nos livros ou computadores. Porque todas as culpas e remorsos benefícios e fracassos se confundiram e se anularam.
E não ficou pedra sobre pedra. E as desavenças e as crenças e os monumentos e as taras foram extirpados e engolidos pelo mesmo rodamoinho desencadeado pelas mãos terríveis.
XX
Um dia, o sol voltou a brilhar, mas ninguém notou porque quase tudo havia deixado de interessar e perdera o antigo sentido. E os mortos se reuniram aos vivos e constatou-se que nunca mais nasceu ou morreu alguém sobre a face da terra e todos se esqueceram de tudo o que souberam fizeram ou sentiram e agora estão embalados embalsamados monopolizados envolvidos por uma ideia fixa. Que virou o centro de tudo. Que virou o centro do mundo. Que não tem nome cheiro cor
A felicidade completa, aqui neste planeta de inveja e desolação, tem a grande desvantagem de atrair... A completa infelicidade. E esta, chega do dia para a noite. Quando tudo corre às mil maravilhas, inopinadamente paira uma névoa pestilenta no campo magnético da vítima, e na rapidez característica das desgraças, vai esparramando miasmas venenosos da adversidade ̶ prelúdio da bancarrota, da humilhação, do infortúnio.
É um caminho sem volta; mas, há quem acredite em caminho que leva e traz – e assim é, porque quando o infeliz, ferido de morte, se queda a menos de um milímetro do auge do desespero, se tiver que vir, o socorro vem – a infelicidade, que era absoluta, cede lugar ao antídoto capaz de manipular o destino – e não raras vezes, do inferno, subitamente se faz o paraíso.
A essa inquietação permanente dá-se o nome de Roda da Fortuna, mil vezes temida pela sina de, sem interrupção, girar, e friamente ditar felicidade ou desdita: Hoje, eu; amanhã, você. Hoje, o poder; amanhã, a indigência. Hoje, o sublime milagre do amor correspondido; amanhã, a crueldade da perda, a crueza do coração repelido, uma pavorosa solidão.
Em suma, nada é duradouro e tudo é possível quando a Roda se intromete e gira. E se acaso lhe apraz, movida não importa por que motivo, frívolo ou divino, a Roda vira pelo avesso a adversidade, e restitui a Fortuna confiscada ̶ em plenitude e exuberância maiores do que nunca.
Pois é assim, mas, talvez não seja. Que ouça quem puder, e não se meta a interferir, posto que a isenção é atributo dos sábios e aquilo que ainda não é, será; e todavia não será, mas será e não será aquilo que vai ser.
Quem pode dizer, diz, sim; quem não pode, diz que não. Falaram hoje pra mim, da Turma do Teatrão. O inverno já encheu, precisamos de verão. Pirulito bate, bate, como bate o coração. Chove chuva chocolate na arena do Teatrão.
Pepino, nabo e tomate, vassoura, cera e escovão; martelo, prego, alicate, carnaval, Inquisição; Pelé pediu pra jogar na Turma do Teatrão. Meu limão, meu limoeiro, meu rato de estimação, morreu Dom Pedro, primeiro; depois morreu Napoleão.
E assim falou Maomé no ouvido de Lampeão: — Venta vento nordestino nas boates de Milão. Cada qual tem seu destino e cinco dedos na mão. O Rodolfo Valentino não seria canastrão, se entrasse, quando menino, na Turma do Teatrão.
E assim falou Maomé no ouvido de Lampeão: — Quem pode dizer, diz sim, quem não pode, diz que não. Quem gosta de mim, são vocês e a Turma do Teatrão.
A Turma do Teatrão existiu em Varginha, MG, de 1969 a 1973, por mim idealizada, e fundada com o entusiasmo e o empenho de Célio Segundo Salles, Michel Pedro Filho, Mauro Teixeira, Márcia Marília Biscaro Moreira, Lúcia Helena de Assis Paiva, Getúlio Mota Neto, Elzinha Mota, Paulo Sérgio de Assís Paiva, Stéfani de Salles, Eny Pereira, Nilson Antônio Ribeiro, Otacílio Misael Correia Pereira e Lucídio Wagner Pires.
Estreou na cidade de Paraguaçu com o espetáculo Showriso de Mulher. Em Varginha, no Theatro Capitólio fez a Criação do Mundo pelo Método Confuso, Teatrão Com Sol de Primavera, Está Faltando Você, todas em criação coletiva. Viajou por inúmeras cidades de Minas com repertório variado, sempre obtendo grande aceitação. Em Boa Esperança, MG, participou e venceu o I Festival de Música, em 1970. Tínhamos um Patrono de corpo presente, e presença mais do que constante, o cantor, músico e compositor Sílvio Brito, que ainda não havia explodido na mídia e e era o band leader do conjunto Os Apaches. Foi elevado à categoria de Patrono, num gesto de agradecimento de Célio Segundo Salles: Sílvio Brito emprestava seus músicos, aparelhagem de som, levava o elenco em sua kombi às cidades próximas em dia de espetáculo, não cobrava gasolina, assistia todos os nossos espetáculos, aplaudia calorosamente e ainda pagava ingresso para entrar. Como quase tudo neste país, a Turma do Teatrão foi forçada a encerrar suas atividades em 1973 por absoluta falta de recursos financeiros e excesso de cansaço e desânimo. O "repente" em questão, que lembra o Poeta do Absurdo José Limeira fazia parte do espetáculo, dito por todo o elenco feminino. Era nossa cédula de identidade.
Ah, que eu juro que tua festa é minha, E minha a dança enfurecida de teus pés morenos. Ah, que eu me esparramo inteiro em teu caminho, Me abrindo como fruta ao gume de teu corpo, sangrando como sol pisado por teus pés.
O que eu queria mesmo era sentir-me preso aos elos de tua voz ditando-me caprichos, ao teu menor desejo, às tuas neuroses, ao teu chicote morno, ao teu pior castigo.
O que eu preciso mesmo é ver-me escravizado à fera que há em ti e que tão bem ocultas, à ilucidez perversa de teus sonhos soltos, aos saltos das sandálias me cortando o dorso.
Ah, minha tirana, flor neurótica, rosa de quatro espinhos, dilacerante lua, eu quero teu domínio.
Eu quero o teu fascínio, extravagante estrela, me embrenhar, me embriagar em tuas armadilhas, em tuas maravilhas me emaranhar.
É como se fosse um mistério, um milagre, um abandono. "A beleza é um gesto longo de caminho que nunca vai chegar... Um caminho humilde, cadeiras nas portas, velhos e casas cochilando; e o vento pedindo uma rosa, pedindo uma rosa, pedindo... (*)
De repente, no meio da noite, um circo. Os ciganos e as fitas coloridas nos pandeiros. A sorte nas cartas. Os tachos de cobre. A sorte na mão. Os punhais de prata.
E quem não acredita nas fadas tem os olhos irremediavelmente perdidos para todas as maravilhas. É uma questão de coração. É uma questão de coragem.
Proponho fazer uma poesia com o teu corpo Não penso em ser teu dono, quero apenas que minha língua fale por mim em um idioma que te enterneça e te arrepie.
Quando um povo oprimido descobre que é capaz de reivindicar e constata, surpreso, que cidadania existe, que direitos foram feitos para que sejam exercidos e tiranos para serem derrubados... Aí, sim! É como se o povo estivesse despertando de uma longa infância e dando seus primeiros passos em direção à unica democracia possível, àquela que ele, cidadão, quer que exista; àquela que nasce de sua vontade; e é, portanto, a verdadeira.
Acho que está faltando alguma substância no organismo. É, eu ando meio apaixonado. Sabe, dessas paixões sem direção? Cupido me flechou e se esqueceu de flechar a mulher; entende o que eu digo? Na verdade, essa mulher não existe.
Só sei que fica vazio dentro da gente, e aquele desespero de preencher o vazio, o mais rápido possível. Sei que passa. Ainda bem. Só que não sei se é bom passar, não. Sim, porque depois que passa, vem aquele outro tipo de vazio. Um gosto de "perdi algo", sem saber exatamente o que se perdeu.