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Marcos Resende Poemas

Marcos Resende Poemas

Apocalipse I

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Faltam poucas horas.
E ninguém sabe.
Todos caminham
E ninguém sabe.
Mas, ninguém pergunta: anda.

Multidão de gente que precisa andar, embora o frio, a fome, o sono e os músculos doloridos não se compenetrem de que o que sempre foi, nunca mais será, porque ninguém consegue mais revigorar as ampulhetas, relógios e clepsidras e nem sequer cogita-se da necessidade de se fazer isto. E muito menos passa pela cabeça de qualquer mortal que até o dia de ontem era costume consultar-se, constantemente esses instrumentos e que, por hábito, contava-se o tempo e até o dividiam.

Até o dia de ontem tudo estava acontecendo na mais perfeita guerra, ordem e sincronismo. E por que hoje tudo mudou? Por que as frigideiras não estão chiando ao calor do fogo, e os ônibus, aviões e trens não cumprem suas rotas costumeiras?

Por que tudo mudou? Ontem, a esta hora, tudo parecia ingenuamente bom, e a brisa, o sol e a lua — sem qualquer aspecto de renúncia (ou mesmo, de cumplicidade) — compareceram com fidelidade ao compromisso cósmico.

Ai, porque hoje não é o ontem que ontem foi? E quem semeará o trigo e o centeio, agora que este hoje hojou sem escrúpulo? Quem apascentará os rebanhos e apartará das flores as ervas daninhas? E os ratos, gafanhotos, traças? E os escorpiões, quem os matará? As formigas destruirão o que de destruível for, se por acaso a bicabilidade dos pardais não se antecipar. E por que? Por que mudou?

E esta andança sem parança leva a qual cidade? Se houvesse quem soubesse um nada disto tudo, saberia tudo, porque nada sabem os itinerantes seres — outrora nominados homens e mulheres.

Nada se pode fazer. E fazer o que? Como negar a estes famintos seres pernimoventes o direito de saciarem sua fome de caminhar ao deus-dará? Qual coração destituído de caridade ergueria barricadas e obs-táculos proibitivos a esta sede corrosiva que os moveu a pular de suas camas à meia noite em ponto e os fez se desentocar brutalmente de onde quer que estivessem, e os empurrou — vestidos como estavam — a esta andarilhança?

Tudo mudou. E por que?

Todos vão. Ninguém resiste.
Os inválidos e paralíticos se recuperam de seus membros nulos e se incorporam à população ambulante. Um a um, velhos e velhas, bebês e leopardos caminham lado a lado. Individualmente. Hipnotizados.
E o vento se compraz em se espojar no espaço que ontem, possuído, é hoje intenso e vago.

Por que mudou o mundo e todos se conformam — e mais que isto — apóiam e compactuam com o golpe baixo às tradições aceitas? Por que ninguém faz nada? O soberano omite-se em razão de quê?
Policiais, soldados, guardas, carcereiros soltam dos cubículos todos os prisioneiros e ninguém se detém em minúsculo ponto de interrogação que seja?
Onde o espadejar enérgico dos generais, o pulso de ferro dos governadores, a excomunhão tonitruante dos cardeais?

O sol sumiu do céu, se extraviou, fugiu. Dez horas da manhã e o sol negou. Negrou. Não veio. Nem virá. Foi buscar refúgio na última galáxia.
E ninguém terá idéia de se conscientizar desta negligência a mais, porque a curiosidade esteve em vigor até o dia de ontem e a capacidade humana de perguntar, que de há muito ia, dia a dia, sendo desencorajada por várias circunstâncias, se viu a partir de hoje varrida definitivamente da face da Terra.

Faltam poucas horas.
E ninguém sabe.
O que sempre foi nunca mais será.
A escuridão range os dentes e resiste.
E amanhece na cidade e no mundo.

II
 
A hora é mágica, fantástica, pacífica.
Processa-se a procissão
que progride num progresso
que não espanta nem fere,
nem agride, nem pergunta.

E não se trata de um,
nem de dois,
nem de dezenas.
É caudalosa avalanche
de carne, sangue e volume.
É lume, é luz dos archotes,
é labareda de tochas
iluminando o desfile.

Já não se trata de nada.
São autômatos.
Mecânicos.
Computadores orgânicos
em marcha, em massa, em cordão.

Já não se tratam de alguns.
É a humanidade compacta
entrelaçada inteiriça
na caminhante mania.
São continentes inteiros
Inteiros em contingentes.
Incontinenti aderindo
à doença andeja andante.
 
III

 

E todos os feiticeiros trouxeram cataventos.
E todos os túmulos se abriram e despejaram
poetas, menestreis e mágicos.

E todos os gondoleiros louros
atravessaram os canais,
os farois e os umbrais
das poesias mais tempestuosas,
das saudades mais amargas,
das promessas vagas,
lancinantes mágoas,
procurando a luz em lâminas de alento.

Singram sensações
que desconhecem príncipes e princípios,
porque todos os lemes e lemas foram esquecidos,
como perderam o sentido reis e leis,
bulas e bússolas,
rotas e rotinas,
couraças e ancoradouros,
promontórios e semáforos.
 
IV
 
Os que estiverem nas brumas,
nas penumbras, nas necrópoles

Os que estiverem brincando,
padecendo, machucando,
descrevendo ou destroçando,
troçando, escrevendo ou rindo

Os que estiverem despidos, distraídos ou perdidos
e — principalmente os que não foram traídos
e não obstante,
traíram até seus pensamentos mais íntimos

Os que estiverem não fujam,
não disfarcem, não adiem:
peguem martelos e pás,
picaretas e guindastes,
e desenterrem seus mortos,
que, através de dinastias, reinados e tiranias,
foram sepultados vivos,
cimentados nas paredes
dos castelos, dos mosteiros,
sufocados nas cisternas,
enterrados nas varandas.

V

Enquanto processa-se a procissão e nem por isso o silêncio desiste de desexistir, eis que — no íntimo da África, um babalorixá assina, um pai-de-santo assinala, um ogan sibila e abala o bumbo e bole no atabaque. Bate no tan-tan. E o batebã rebate pela selva toda. De todas as bandeiras, bandas e arrabaldes comparecem tochas, lanças e guerreiros.

É o povo em fé à batucada e ao rei; ao santo e ao deus das maravilhas roxas, dos canaviais, das chuvas, da mulher de mel.

É a hora do mito.
É a hora do rito.
É a hora em que o homem procura uma ponte que aponte o caminho que vença a distância interposta entre a terra e o Senhor das estrelas.

Tambor de Luanda é Tambor da Bahia.
Se o vento espalhou, não se viu. Nem valeu. Ninguém combinou. Se o galo cantou, não se ouviu, nem contou. Ninguém percebeu. Coincidência talvez. Num quase assustando, zabumba e agogô, tumbadora, bongô retumbaram na taba. No escuro. No mar. No silêncio.

Bumbou batebum no terreiro sem ordem, sem chefe, sem hora, nem dia. Ninguém na palmeira. Ninguém avisado. Sem banho de erva. Incenso apagado.

Milagre? Castigo? Brinquedo de Exu? Pergunta não houve. Vestiram de branco.

Terreiro de preto é congal e é sagrado. E se alguém começou no batuque e na dança, não há quem rejeite. Estão prontos, se apressam e se deitam na areia e no sal.

Se cantam seus pontos, os santos se achegam. Revestem seus corpos. Oxóssi das Matas despacha, aconselha, dá passes e dança.

Tambor de Luanda é Tambor de Umbanda. E todas as tribos, de todas as terras, países, raízes e cores e coros e povos, costumes, se multimoveram no mesmo princípio.

É a dança que dança e redança e não cansa e não pára, não mata, nem fere e regira e revira e retrança no vira-que-vira, no cai-e-levanta; e o rumor compassado comanda e desmanda, marcante, cantante, ficando e fincando no sangue, no bam e sistema nervoso, num bate-que-bum, taque-tabe, rebum, sacum-bum, sacum-bate.

É a fé. Candomblé. É o jogo de búzios. Oxum cochichando nas conchas do mar. No axé, orixás chamejantes xingando, chispando, fechando despachos e ebós. Eparrei!
Iyakêkêrês, berimbaus, caxixis, a dança das cobras em Oxumarê. O sangue das pombas, a lua encantada descendo nas tendas, luando os pejis.

E a lua é Luanda montando nas moças, deixando em seus ombros um gosto de mato, um charme de bicho, um ar de pantera, um dorso de fêmea cheirando alecrim.

É quase um rodamoinho, carisma ou cataclisma. São caboclos, pretos velhos, aptos e ávidos para incorporar seus médiuns e presidir a sessão de prodígios, no intercâmbio entre o homem que desconhece e crê, e se mancomuna com o todo-poder da sombra, transubstanciado em espectros que falam a mesma língua, o mesmo dialeto.

Rabo-de-arraia. Rá. Raiou. Zimbo-birê. Okê arô. Angola pequena. Jandá-iê. Zem. Faca de ponta. Co-co-ro-cou. Colares de contas. Za-zuê. Zagaia zuniu. Za-zoou. Angola-iê. Ô-timbora.

Incenso defuma. Os santos comandam, dão ordens, consolam, conselham, dão passes. Descruzam, descargam, carregam, milongam — ô-colê.
É o fumo. A cachaça. O incenso. O charuto. O cachimbo. O suor gote-jante na pele, no peito. Aiê-colê, colaiá. É o fumo. A cachaça, o in-censo, o charuto, o cachimbo, é Exu, é Xangô, é Ogum, Iemanjá. É o fumo a cachaça o incenso o charuto o cachimbo o suor é o fumo a cachaça o incenso o cachimbo o charuto é o fumo a cachaça o incenso o charuto o suor o suor, laroiê, Exu!

Os encantados e ekédis, iaôs e orixás, os obás e os cambones, súbito saem da dança. Batem cabeça e caminham.

VI

Silêncio nas cerejeiras. Nos fiordes. Nas giestas.


No Oriente, os muçulmanos e budistas, os Veneráveis Adoradores do Fogo, os trezentos mil deuses da Índia e os brâmanes e os párias e a interminável legião de prosélitos das diversas seitas que proliferam no Japão, na China e na Pérsia, acenderam archotes, lanternas, lamparinas, candeias e candelabros porque um terremoto se juntou à insinuação do vento do deserto.

E antigas profecias, alfarrábios e papiros renasceram na memória dos monges octogenários.
E velhas arcas foram removidas dos sacrários proibidos.
E um a um, os mistérios indevassáveis emergiram do ostracismo e obscuridade dos milênios.

O Superior da Venerável Ordem paramentado pelo capuz vermelho que a ocasião impunha, empunha tremulamente um alfanje, e ordena que os fieis cubram a cabeça de cinzas e entoem os cânticos habituais de expiação.

E um a um, os lacres e selos esparramam-se ao chão e os três pergaminhos que existiam foram desvendados e vasculhados e assimilados e difundidos. E os que puderam ver e ouvir o que estava escrito compreenderam, por fim, que deveriam se misturar à procissão que havia e a que ninguém fugia.

VII

A hora é mágica. Letárgica. Terrível.

Os mortos se reúnem aos vivos e milênios se convivem. Mas, não se chocam: desfilam.

Os árabes e os hebreus, os sumérios e caldeus, lemurianos e acádios amortecidos levitam, aliviados do peso das sagas e das conquistas, das pilhagens e pelejas.

As amazonas galopam em cavalos antropófagos — escudo e lança na mão — corações enrijecidos. Os tártaros de Kublai Khan, amados até os dentes, ardentes como meninos esparramam-se entre elas. Batalha de corpo a corpo. Caçada entre macho e virgem.

(Ela, correndo, tropeça. Ele espera. Ela se esconde. Ele acha e quase pega. Ela escorrega e escapole, pula pedra, pula cerca, pula no rio toda nua, sai na outra margem, respinga, resplandece, insinua. Ele aparece. Ela corre. Ele alcança, captura. Ela morde, foge, cansa, rola no chão, desfalece, finge que chora, se rende. Ele cavalga seu corpo. Ela deixa, humildemente. Ele dança, bate, beija. Ela sua e agradece. Ele se lança em semente. Ela delira e adormece.)

Jesuítas e paxás, califas e marajás, czares e mandarins deslizam introvertidos. Silenciosos. Soberbos.

Os fenícios e os atlantes, os dinossauros e os hicsos, os etruscos, os hititas, os pelasgos e os assírios misturam-se às ratazanas, esquimós e fiandeiras num cordão impessoal, enregelado, passivo.

Arquimandritas e magos e cleromantes e druidas, necromantes e faquires, hierofantes, sibilas, pajés e sacerdotisas — olho no olho, pudor de bruxo, poder e medo. A fórmula cabalística sabida e silenciada — conciliábulo mudo — por respeito e gentileza.

O carrossel de prodígios. A poeira de fantasmas.

VIII

 

Os que estiverem nas grutas e cataratas,
nos regatos e nos pântanos,
nas florestas e nas casas,
no submar, nos navios,
nos sacrários, nas masmorras,
nos calabouços, nas praias,
nos patíbulos, nas rochas,
nos aviões e helicópteros,
prostíbulos, cidadelas,
nos dramas, nos cataclismas,
nas cordilheiras, nas dunas,
nas enseadas, nas docas,
nos descampados, nos clímax,
nas colinas e nas curvas

Os que estiverem nas minas,
nas filas, nas oficinas,
nos tribunais, nas tribunas,
tabernáculos, tabernas,
entabulando tabelas,
pescando pérolas raras,
desafiando duelos, planejando falcatruas, emboscadas ou motins,
pretendendo qualquer coisa,
engolindo cobra viva,
caminhando, perguntando,
respondendo, procurando

Os que estiverem, não fujam,
não disfarcem, não adiem:
procurem pela menina de cabelos cor-de-bétula,
que descobriu o segredo do canto dos rouxinóis.

IX

 

Silêncio nos Monastérios. Minaretes. Mausoléus.

Até que os sarcófagos e as catacumbas libertaram os santos e as fadas e as pitonisas e os Cavaleiros das Oitocentas Cruzadas e os antigos heróis que a memória dos Maias, dos Incas e Aztecas imortalizou em narrativas épicas, em volta das fogueiras acesas.

E todos os faraós que investiram na vida após a morte ressurgiram da poeira e da neblina das pirâmides e das épocas. E o mesmo se sucedeu com os seus servos e servas, rebanhos e pedrarias, amuletos e arquitetos.

 

É a hora do mito.
É a hora do rito.
É procissão. É processo. É princípio meio e fim.

À frente, papas e esfinges,
os gordos e os anões,
rinocerontes, donzelas,
tartarugas e sultões,
patriarcas, cardeais, gladiadores e bispos,
palhaços e trapezistas,
eunucos, malabaristas, grão-vizires e ateus.

Não é noite. Não é dia.
É uma estrela vadia, enviesada, vazia.
É raiva de uma galáxia empanzinada. Rendida.
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Apocalipse II

Escuridão e o séquito de sandálias e sapatos.
Samurais, segréis e silfos
palmilhando o pó do pânico
Regurgitando. Rugindo.

É como se fosse uma cornucópia
Esparramando horror numa toalha.
E como se fosse a madrugada besta esfaqueando a lua.

E rumo ao despenhadeiro
Celeremente caminham
Escorpiões e fantoches,
Almirantes e eremitas,
Lenhadores e morcegos
Carrascos e hamadríades.

A tropa fantasmagórica
De personagens estranhos.

O Grande Lama do Tibet
Os Mosqueteiros de França
O Homem de Neanderthal
Os Piratas do Caribe
Os Gangsters de Chicago
Os Fidalgos Espanhóis
Ivan, o Ferroviófilo
Salteadores de Estradas

O Fazedor de Brinquedos
E o Velho da Montanha
Limpadores de Chaminés
O Homem que botava ovo
O Homem que beijava pés
O Homem das Neves
O Holandês Voador
E o Judeu Errante.

E haverá silêncio até que o relógio dos séculos
manquitolando caduco balbucie a Hora Alta.

XII

Todas as aparições foram confirmadas.
As doceiras farão um doce de abóbora
com um gosto muito antigo.

E as pessoas se libertarão dos medos
como quem se purifica do mofo de uma ditadura.

XIII

Raiva e remorso — delírio.
Grito escarrado na noite.
Escuridão e declínio.
Sangue de vento. Perigo.

A hora é mágica. Fantástica. Fatídica.
A multidão semovente multimove-se, palpita.
Quem pode ver se regala, se lambuza. Precipita.

Sem tambor e sem charanga,
A humanidade caminha.
Mortos e vivos pairando
nas enxurradas, nas ruas.

Hereges e domadores,
cônsules, réus, joalheiros,
apóstatas, centopéias,
deputados e serpentes.

Marionetes e nereidas,
pigmeus e senadores,
arautos e fazendeiros
e touros mortos na arena.

Burgomestres e centauros,
minotauros, marinheiros,
cirurgiões e harpias.

E a noite que não dá conta.
E o dia que não desponta.
A noite, a noite e a agonia.

XIV


E todos os túmulos se abriram
e despejaram os músicos, quiromantes e astrólogos,
argonautas e ciganos
e viajantes do espaço, dos trópicos e oceanos
com suas caravelas, naves e espaçonaves,
cartolas e coelhos,
instrumentos e esferas encantadas.

XV




Caleidoscópio de raças. Trajetória de absurdos.
Sarapatel de miragens. Bacanal de maravilhas.

É como se fosse um circo, anfiteatro infinito.
Ah, se alguém pudesse ver da arquibancada do mundo, o despertar de dragões, o desfilar de gnomos, a frota de zepelins, o Velocino de Ouro.

A majestade e o fascínio da caravana impossível. A Rainha de Sabá (formosa como a lua) escoltada por todos os tapetes voadores de todos os gênios das mil e uma noites.

Pégaso, o cavalo voador, planando placidamente, enquanto o Pássaro Roca encabeça a esquadrilha de corujas e falcões e grifos e basiliscos, gaivotas e vampiros, pterossauros e anjos.

E todos os turbulentos deuses, de todas as épocas e mitologias, epopeias e dilúvios, transitam plenividentes, destronados e ambíguos, seguidos pelas gazelas, unicórnios e ciclopes, sereias e tuaregues, arquiduques e carunchos.

Ah, se houvesse um telescópio afunilando as imagens alucinantes do dia. Prometeu, fogo no fígado, incêndio na mão, abre alas para os rebeldes, os gigantes e os ursos, os grão-mestres e tetrarcas, caranguejos e gurus.

Cérbero, o cão do inferno, no farejar de fantasmas é mestre-sala e vigia na fileira dos coveiros, das carpideiras e crápulas. É o bloco dos sonâmbulos, dos alcaides e dos cúmplices, dos índios e bailarinas, dos jacarés e dos búfalos, do Monstro do Lago Ness, das cigarras e Valquírias.

O Rei Arthur da Távola Redonda corta o cortejo com Excalibur, sua espada encantada, com Guenevere, sua rainha impossível e Lancelot, seu amigo intocável. No horizonte, flamejando, a visão inviolada do Santo Graal — um vislumbre, um slide embaralhado.

E todos os que foram vice na vida viajam no mesmo grupo, entre leões e duendes, templários e alquimistas, tanques de guerra e mucamas, pastores e cangurus.

Ah, se alguém pudesse ver na trajetória do dia, o emaranhado de assombros, orgia de gente morta, navegantes do absurdo.

XVI

Haverá silêncio.

A caminhada persiste até o fim dos meridianos e desertos, paralelos e países.
O vento engole as cidades arrepiando os telhados.
Mas, não subsiste medo, nem solidão, nem tristeza.

Todos vão. Ninguém resiste.
A maratona evolui através dos sete mares,
sustentando-se nos ares,
ou de mãos dadas com a terra.

São antílopes e focas,
golfinhos e pernilongos,
açougueiros e leprosos
tubarões e petroleiros.

Arraias, rãs e cachorros,
barões, balões e baleias,
cavalos marinhos, elfos,
hussardos e camundongos.

No ar. No mar. E na terra.
Baralho de barafunda. Emboscada do universo.

Do fundo do Apocalipse — horizonte submerso,
submarinos acordam galeões adormecidos.

Os Vikings ressonando, aparvalhados navegam.
As carantonhas nos barcos esboçam longos gemidos.

Cleópatra e Medusa, descalças seguem por terra.
As cobras de seus cabelos se enroscam nos seios dela.

Os Tugues (laço da morte) tropeçam entorpecidos
em gigolôs e nazistas, cascaveis e rezadeiras.

No céu, um carro de fogo: Elias, nauta do tempo.
Profeta em cama de gelo planando no fim do mundo.

Cavalo bravo no céu. Zarabatana de estrela.

XVIII

Silêncio. Escuro. E a pergunta.

A procissão e o mistério prosseguem na superfície.
Mas, não subsiste medo, nem corrosão, nem suspeita.

O espaço. O cortejo. O escuro.
Os passos recompassados de todos os que caminham
ignorando e seguindo:

Os profetas e os caciques
e deuses e heróis e putas
e surdos e saltimbancos
e sádicos e sambistas
feras, frades, freiras, fracos
filósofos e fiscais
juizes, rabinos, rábulas
funcionários e escrivães
mentecaptos, capachos
ladinos, ladrões e atletas
marqueses, condes, pedreiros
costureiras e ministros
policiais e viragos
jornalistas, analistas,
estagiários, românticos,
maconheiros, normalistas
corretores, corredores
propagandistas e ateus
veterinários, filantes
artistas, químicos, tísicos
pescadores, milionários
missionários, mísseis, missas
demissionários e omissos
astrônomos e gastrônomos
catequistas e taquígrafos
mordomos, bajuladores
diretores e ratinhos
bancários, bestas, fascistas
emboabas, baobás
pastorinhas, facadistas
construtores, detratores
tradutores e tratores
militares, oculistas
engolidores de espada
amoladores de faca
arrombadores de cofres
palpiteiros, moralistas
clientes, crentes, crianças
escafandristas, ourives
gramáticos, tico-ticos
mercenários, marceneiros
verdugos e verdureiros
professoras e madrastas
moleiros, moles, moleques, leques, mós e leiloeiros
marxistas e maquinistas
esportistas e abobrinhas
estrátegos, traficantes
ociosos e ansiosos
sátrapas, sapateiros, trapaceiros e trapistas
encantadores de cobras
cobradores e barítonos
protestantes e porteiros
lambisgóias e lombrigas
facínoras, sacristãos
pierrôs, prestamistas, cornos
puritanos, anarquistas
congregados marianos
cafetões e cafelistas
censores e ascensoristas
rainhas, reis e galinhas
saracuras e espantalhos
pediatras e pedintes
paraplégicos e alérgicos
curtidores e coristas
sifilíticos, políticos
ciclistas e pipoqueiros
comerciantes e esquilos
católicos e cristãos
salafrários e sacrílegos
cineastas e azeitonas
sine-qua-nons e sineiros
vigaristas e vigários
invejosos e aluninhos
astronautas e tatus
fariseus e carvoeiros
pintores, pintos, piranhas
farândolas e fandangos
centuriões, curiangos
debutantes e gorilas
locutores, surdo-mudos
avalistas, vira-latas
pára-quedistas e alcoólatras
racistas e estupradores
viúvas e uvirunduns
caipiras e caiporas
morubixabas e bichas
amadores, mamadores, ouvidores e vidrilhos
embaixadores, baixotes
chupins, cha-cha-cha e chatos
cardiologistas, lojistas
barbeiros e barbatanas
flibusteiros e arcebispos
capangas e pangarés
valentes, levantes, lentes
patriotas e avestruzes
ventríloquos e ventrícolas
herdeiros profissionais
liberais e libertinos
matemáticos e mate
dissidentes e dentistas
bem-te-vis e detetives
acadêmicos e micos
varejões e varejistas
direitos e advogados
engenheiros ou relógios
agentes e viajantes
catedráticos, titicas
baratas e burocratas
vendedores e vendidos
agiotas e jurados
gente bem e gente boa
sogras, sapos, ogros, grilos, agricultores, grevistas
fotógrafos e elefantes
primeiros da classe e cônegos
poetisas e mulheres
prolixos e lixeiros
croquis, crocotós, croquetes, prós e contras, contra-regras
contratados e tratantes
ritmistas, logarítimos, marítimos e retretas

filhas de papai
filhas-de-maria
filhas-de-peixe
filhas-da-puta
latinistas e stalinistas
vegetarianos, presbiterianos
latifundiários e leiteiros.

XIX

De repente, o abismo.

O primeiro homem de uma civilização perdida, jamais conhecida, nem sequer suposta, é expelido entre labaredas e cinzas de um vulcão que acabava de nascer.

A hora é mágica, fantástica, pacífica.

Uma faixa de arco-íris anuncia a primeira estrela aparecida após o ê-xodo do sol.
É uma estrela cadente?
Ninguém sabe o que é,
nem se admira
nem chora,
nem sorri,
nem range os dentes,
nem pergunta,
nem comenta.

A hora é mágica, e as gargantas ao mesmo tempo se agitam, as cordas vocais se animam e aparece uma canção.

As bruxas e os mendigos
os oprimidos e os sábios
os alfaiates e os tímidos
todos cantando, cantando
e olhando para o céu.

É uma estrela caindo.
É ouro é diamante.
É pérola é madrepérola é chuva
é meteoro
é tudo é nada é gemido
é um pedaço de luz.

É uma estrela, um cometa,
um planeta, um meteoro.
É um disco voador.
Todos esperam sem pressa,
como se nada importasse.
Mas, o silêncio voltou.
O canto murchou nos lábios.

Da estrela desce uma forma jamais vista por olhos humanos. É um astronauta? Um pirata? Uma boneca de louça? Uma garrafa de vidro? Um invasor? Uma flor? Todos enxergam com nitidez e precisão, mas estava escrito que o cérebro humano não fora planejado para identificar, comparar ou rotular aquela entidade estranha.

Mas, de repente, todos viram duas mãos resplandecentes — líquido elétrico — solavanco cósmico — metralhadora fluídica.

E o que acontece depois nunca será registrado nos papiros nos livros ou computadores. Porque todas as culpas e remorsos benefícios e fracassos se confundiram e se anularam.

E não ficou pedra sobre pedra. E as desavenças e as crenças e os monumentos e as taras foram extirpados e engolidos pelo mesmo rodamoinho desencadeado pelas mãos terríveis.


XX

Um dia, o sol voltou a brilhar, mas ninguém notou porque quase tudo havia deixado de interessar e perdera o antigo sentido. E os mortos se reuniram aos vivos e constatou-se que nunca mais nasceu ou morreu alguém sobre a face da terra e todos se esqueceram de tudo o que souberam fizeram ou sentiram e agora estão embalados embalsamados monopolizados envolvidos por uma ideia fixa. Que virou o centro de tudo. Que virou o centro do mundo. Que não tem nome cheiro cor

Outubro, 1974 

ILUSTRAÇÃO:
Aloísio Abreu
Gustavo Ferreira
Alexandre Lobianco


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