Fuga
De todos os lados vejo olhos de bocas
a me olharem e a falarem de mim.
Todos olhando e esperando,
com olhos luminosos e febris como corujas empoleiradas
de noite, nos galhos de árvores,
e com línguas aceleradas de maritacas presas em gaiolas apertadas.
Todos olhando e falando...
De todos os lados vejo mãos estendidas e dedos me apontando.
Todos sequiosos por me enquadrar no exército automático
e me oferecer uma aliança de chumbo.
Todos ansiosos por me dar uma cadeira com correias,
uma mesa de papeis e um escritório com grades.
Mas não serei capturado assim.
Tenho o solene compromisso com a arte,
de me evadir por entre esses dedos ameaçadores,
essas mãos crispadas;
de fugir dos uivos estentóricos dessa turba amorfa,
bailarinos do cotidiano-comum,
num salão-comum,
numa cidade-comum.
Homens de vida anêmica, de amor parcimonioso,
de escritórios abafados e de respiração pesada.
Homens de oito horas de serviço diário,
de jornal à tarde,
de televisão à noite,
com a infalível novela diária;
homens dos escritórios e das fábricas,
homens dos bancos e dos empregos públicos,
homens cansados, estragados e gastos,
como as solas de seus sapatos surrados,
com sua roupa desbotada, igual nos dias da semana árdua,
eu lhes peço:
Não me constranjam a me perdem em seu rodamoinho suicida!
Não me obriguem a morar em seu ataúde de gelo
e a ser enterrado vivo na sua tumba de areia insípida.
São Paulo, 1966